Em compasso de espera | Novas emissões de Fidcs ficam em stand-by enquanto CVM e Anbima discutem a flexibilização das regras para a transferência das atividades dos custodiantes para terceiros
Edição 236
A indústria de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (Fidcs) atravessou o primeiro quadrimestre de 2012 em compasso de espera. No fim do ano passado, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) passou a adotar uma postura mais rígida para a aprovação de ofertas de Fidcs e, ao mesmo tempo, deu início a um debate com o mercado a respeito da terceirização, pelos custodiantes, de atividades referentes a esses fundos. Enquanto os novos procedimentos não eram definidos, a indústria preferiu manter as futuras ofertas no forno e só tirá-las de lá quando as regras do jogo estivessem mais claras.
A expectativa geral é que se chegue a uma norma que não inviabilize o avanço do setor. E a visão a respeito do canal de diálogo criado entre a CVM e a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) é positiva. Apesar de esses primeiros meses terem sido de stand-by, a confiança é de que o ano como um todo será bom para os Fidcs no fim das contas.
Francisco José Bastos Santos, superintendente de relações com investidores institucionais da CVM, explica que há cerca de seis meses houve um entendimento por parte da área jurídica da autarquia que acabou mudando um pouco a forma de a CVM olhar para os Fidcs.
“Continuamos aplicando a norma em vigor. O que mudou foi o entendimento da nossa área jurídica em relação à possibilidade de o custodiante terceirizar as atividades que lhes são atribuídas pela norma. Até bem pouco tempo atrás, era uma prática corriqueira do mercado que o custodiante terceirizasse a guarda, a verificação do lastro, a observação dos critérios de eligibilidade, a liquidação e a cobrança [dos direitos creditórios]. Assim, o custodiante não exercia nenhuma dessas atividades diretamente, mas por meio de terceiros, que normalmente eram o orginador cedente. No âmbito de um processo administrativo sancionador, porém, a área jurídica da CVM se posicionou no sentido de que o custodiante só poderia terceirizar essas atividades para outro custodiante igualmente credenciado e habilitado na CVM para tal”, explica o superintendente. Ele acrescenta que, desde então, a CVM tem aplicado esta interpretação.
O superintendente frisa que a norma que trata do assunto não mudou. “Nós apenas acomodamos essa interpretação tanto no tratamento das infrações quanto nas análises dos pedidos de registro de Fidcs. E o entendimento da área jurídica ajudou, inclusive, nos diálogos que estamos tendo com a Anbima. Imediatamente, a alta direção da CVM pediu para nós e para a superintendência de desenvolvimento de normas que se iniciasse um processo de aperfeiçoamento normativo. E assim foi feito”, aponta. O superintendente diz que está em curso um aprimoramento da norma que provavelmente vai caminhar no sentido de flexibilizar um pouco as restrições à delegação de atividades. “Mas estamos analisando em que condições essa flexibilização pode ocorrer”, pondera. Santos garante ainda que, hoje, quem for à CVM “e cumprir todos os requisitos da norma terá o seu Fidc registrado sem problema”.
Uma fonte ouvida por Investidor Institucional afirma que a intenção era que os participantes do mercado, representados pela Anbima, entregassem um documento com suas propostas para a CVM no início de maio. “Estamos confiantes na flexibilização”, disse a fonte. Segundo ela, alguns de seus clientes acabaram ficando sem estruturar Fidcs no início do ano porque não havia uma previsão de como se daria o desenrolar das negociações entre a CVM e a Anbima. “Não podíamos vender uma coisa que não sabíamos quando poderíamos entregar. Mas acredito que em breve vamos poder tirar o que estava na gaveta e colocar na prateleira”, estima a fonte.
Adequação – Vale lembrar que o segmento de Fidcs passou por três mudanças regulatórias importantes no ano passado – a C3, novas regras contábeis e envio de informações ao SCR. Para Ricardo Mizukawa, coordenador do comitê de Fidcs da Anbima, toda a atenção que o segmento tem recebido sob o ponto de vista de regulação é consequência da crise financeira internacional de 2008 e 2009, que bem ou mal estava relacionada inicialmente a operações de securitização no mercado norte-americano, e também é fruto de eventos como o do Banco Panamericano e o do Banco Morada. “Esses casos acabaram por afetar o mercado de cessão de crédito tanto para bancos quanto para fundos”, aponta o executivo.
Ele afirma que, a partir de então, deu-se início a uma série de discussões envolvendo CVM, Banco Central, Anbima e Febraban no sentido de aperfeiçoar os mecanismos de controle e disclosure de informações das operações de securitização. “Algumas iniciativas já foram implementadas ou estão sendo agora, mas há outros temas em discussão”, adianta Mizukawa. Ele conta que um desses temas está relacionado a precificação e critérios de provisão da carteira dos Fidcs. “Seria semelhante ao que discutimos sobre marcação a mercado de fundos de renda fixa ou multimercados”, compara. A intenção seria elaborar, via autorregulação, um manual específico para a indústria de Fidcs, que administradores e custodiantes teriam que adotar. “Isso deve ser implementado ainda este ano”, estima ele.
Na opinião de Mizukawa, as mudanças regulatórias já promovidas, assim como as que estão em discussão, podem interferir no dia a dia da indústria pois envolvem investimentos e alterações significativas de sistemas e de procedimentos de controle tanto por parte dos administradores e custodiantes de Fidcs como pela CVM e pelo Banco Central, que deverão receber as informações. Ele acrescenta que as novas regras também impactam os cedentes dos direitos creditórios, tendo em vista que o número de informações sobre os direitos e devedores cresce.
“No médio e longo prazos, no entanto, como as mudanças visam elevar a segurança e transparência de informações aos investidores, tendem a aumentar a confiança no mercado de Fidcs, que passará a ser suportado por um arcabouço regulatório e autorregulatório muito mais robusto e avançado do que aquele observado em operações de securitização no resto do mundo”, acredita Mizukawa.
Investimentos – O executivo lembra que hoje não existe um procedimento padrão entre os administradores e custodiantes, e a intenção é que algo nessa linha seja estabelecido. “Não há um processo padrão, de mercado, instituído via regulação ou autorregulação que seja passível de verificação para que o órgão regulador ou autorregulador possa atuar. A evolução que buscamos é nesse sentido”, explica.
Luciano Magalhães, superintendente de custódia, clearing services e fidúcia do Itaú Unibanco, revela que quatro grandes assuntos estão sendo alvo dessas discussões: guarda de documentos, verificação de lastro, cobrança ordinária e condições de cessão de direitos creditórios. “Os debates com CVM e Anbima passam por procedimentos que devem ser constituídos em autorregulação e por adequações que cada um dos participantes do mercado vai ter que fazer para aprimorar o processo. O objetivo é aumentar a segurança de forma viável, ou seja, sem impedir o crescimento da indústria”, diz Magalhães, que está familiarizado com as conversas.
Para o executivo, os serviços prestados ao segmento de Fidcs nunca serão baratos. “Se há níveis diferentes de controle sendo adotados por participantes do mercado, é possível que haja preços diferentes, mas que talvez não reflitam toda a segurança e cuidado que esse tipo de fundo exige”, argumenta. Magalhães diz que o segmento sempre vai exigir um montante significativo de investimentos, o que já tem se mostrado verdade. “A C3, a instrução 504 e a CVM 489 já exigiram adequações bastante parrudas. Tivemos que mobilizar equipes e sistemas para nos adaptar dentro do prazo e não gerar qualquer tipo de impacto para os nossos clientes. O ponto positivo é que tudo isso mostra que, para ser provedor desse tipo de serviço, é preciso investir pesado. E sem dúvida alguma é um negócio importante. Os custos não são baixos, mas se o serviço for cobrado corretamente, trata-se de um mercado rentável”, garante.
Vale lembrar: a CVM 489, de janeiro do ano passado, trata da elaboração e divulgação das demonstrações financeiras dos Fidcs. Para Antonio Corrêa Bosco, sócio e diretor de operações da BER Capital, a norma trouxe diversos avanços. Como exemplo, ele cita a obrigatoriedade de a transferência dos riscos e dos benefícios de propriedade do direito creditório ser citada em nota explicativa. “O fato de a transferência de risco ser explicitada mostra ao investidor em quem, no fim das contas, ele está investindo. Todos ficam sabendo onde é que está o risco”, afirma o executivo. Ele aponta ainda como vantagem da CVM 489 a forma pela qual a instrução trata as provisões para devedores duvidosos. “É uma maneira muito mais indicada para um fundo do que a anterior, que simplesmente copiava o mecanismo dos bancos. Agora a provisão se baseia no fluxo de recebimento esperado”, observa.
Para completar, Bosco considera o “anexo A” da CVM 489 como um grande passo em direção à transparência demandada pelos investidores. Na prática, ele consiste em um informe mensal que os administradores de Fidcs devem entregar. “Gestor que é gestor tem que ter essas informações, senão não está fazendo o trabalho dele. O trabalho a mais será elaborar um relatório a partir de informações que ele já conhece. Mas as tradicionais lâminas, dão uma posição mensal de cada fundo, ou a carta do gestor, sempre foram feitas. Tudo isso já estava no preço. A vantagem é que o investidor vai se sentir mais confortável”, argumenta Bosco.
Já a CVM 504, de setembro de 2011, regula o envio de informações das carteiras dos Fidcs ao Sistema de Informações de Créditos (SCR) do Banco Central (BC). Ricardo Mizukawa, da Anbima, explica que a partir do momento em que o mercado de Fidcs começou a crescer, as operações de crédito securitizadas para esses fundos deixaram de ser monitoradas pelo BC. “Uma instituição financeira que gerava uma carteira de recebíveis estava obrigada a passar informações para a SCR. Mas se ela pegasse essa carteira e vendesse para o Fidc, as informações se perdiam, porque deixavam de ser enviadas para o SCR. E para o BC, essas informações são super relevantes para monitorar o sistema. Quando os administradores de Fidcs passarem a enviar os dados, isso volta para o sistema. E tanto o BC quanto as instituições financeiras podem acessar essa base de informações, o que é bastante útil para fazer avaliação de risco dos devedores”, detalha o executivo. “Isso dará um pouco mais de trabalho para administradores e custodiantes, mas transparência é fundamental”, opina Bosco, da BER Capital.
Câmara – Por fim, outro grande tema que foi destaque no mercado de Fidcs no ano passado se refere à chamada C3 – Central de Cessão de Crédito. Em julho de 2011, foi publicada a Resolução 3.998 do Conselho Monetário Nacional (CMN), que estabelece que as cessões de crédito relativas a empréstimos e financiamentos com consignação das prestações em folha de pagamento, bem como de financiamento de veículos, deverão ser registradas, pelo cedente e pelo cessionário, em sistemas de registro e de liquidação financeira de ativos autorizados pelo Banco Central.
De acordo com nota da Febraban de janeiro deste ano, “pela normatização do BC, toda cessão de crédito tem, obrigatoriamente, que ser registrada e liquidada via C3, inicialmente para veículos e crédito consignado”, sendo que depois outras operações de cessão de créditos serão incluídas.
“Hoje, existem algumas câmaras de custódia e liquidação, que são basicamente Cetip para títulos privados, Selic para títulos públicos e CBLC para o mercado de renda variável. A C3, no futuro, será uma central de liquidação para carteiras de direitos creditórios”, aponta Mizukawa. Ele diz que a C3 é “também uma resposta ao que aconteceu no Banco Panamericano, em que houve cessões de carteiras de recebíveis que estavam contabilizadas tanto pelo cedente (Panamericano) quanto pelos bancos adquirentes”. Ou seja: os direitos creditórios estavam contabilizados duas vezes. A partir do momento em que a operação for registrada e liquidada na C3, será criado um código para cada recebível que identificará quem é o proprietário da carteira.
Marcelo Xandó, diretor da Verax Serviços Financeiros, concorda que no fim das contas a C3 tornou o ambiente mais seguro, mas pondera que a indústria de Fidcs tem uma diferença significativa na comparação com o mercado interbancário. “As operações de Fidcs já envolvem diversas partes, como gestores, administradores e custodiantes. E os custodiantes já desempenhavam um papel muito importante de fazer a verificação de lastro, bater as operações e alinhar as bases de cessão dos créditos para os Fidcs. Por isso, no caso desses fundos, eu acho que a C3 trouxe um pouco de redundância”, considera o executivo. Ele ressalva que mesmo assim o balanço é positivo, uma vez que gerar mais transparência e conforto é sempre bom.
O executivo lembra que houve uma fase de grande adaptação à C3. “Os fundos tiveram que se adequar a uma comunicação bem mais complexa entre originador e custodiante. Foi uma verdadeira batalha em termos de comunicação eletrônica, de preparo dos agentes para lidar com essa nova tecnologia e colocar o sistema no ar de forma estável”, recorda.
“Houve uma mudança bastante grande no funcionamento do mercado, porque antes as informações do cedente alimentavam diretamente o sistema do custodiante, e agora há uma série de troca de informações com a C3. A adequação teve que ser feita por parte dos cedentes, custodiantes e da própria clearing com relação ao tempo para o processo ser executado”, acrescenta Luciano Magalhães, do Itaú. Bosco, da BER Capital, afirma que o grande problema da C3 foi adequar os estoques, principalmente na área de crédito consignado, em que as operações são mais longas. “Mas a C3 traz o benefício de ninguém conseguir vender duas vezes a mesma coisa. É uma segurança interessante”, aponta.
E apesar de se declarar cansado por conta de todo o trabalho de adequação às novas regulações que envolveram o mercado de Fidcs desde o ano passado, Marcelo Xandó, da Verax, tem uma postura otimista com relação aos efeitos deste aperfeiçoamento do arcabouço regulatório. “As medidas regulatórias não são suficientes para reduzir o apetite do mercado. Pelo contrário, elas podem até estimular o crescimento da indústria em função do aumento de transparência e governança. Trabalhamos muito no ano passado para nos adequar, mas sabemos que isso ajuda a fortalecer o segmento”, conclui o executivo.